a carta que escrevi a uma filha que não sei se vou ter

21 Março 2014

Um dia quando for mãe, e tiver a oportunidade de te olhar num início de um percurso que não escolheste ter, hei-de me lembrar de mim em miúda.
Se tiver a sorte de o ser, e se tiver a ironia de ter uma rapariga em mãos, quero que saibas que não faço ideia do que estou a fazer.
Perdoa-me qualquer coisa.
Qualquer penteado mal feito, qualquer mancha que leves na roupa, qualquer rock que te tenha posto a ouvir na hora de dormir.
Perdoa-me a falta de jeito para te mandar refeições para a escola, ou para ser uma mãe dita normal.
Tenho medo que aprendas a palavra "merda" mais depressa do que "mãe" ou "pai", mas com o tempo compreenderás que a educação, é uma coisa muito relativa.
Não te vou educar para seres uma miúda igual às outras, por isso é provável que venhas a passar alguns intervalos fechada em bibliotecas, outros em casas de banho, e outros a pensares o que raio se passa de errado contigo.
Nada de errado se passa, não és estranha nem insensível, são heranças incontornáveis que vieram por acréscimo, parar até nós.
A vida vai ser complicada, não te vou encher de histórias sem sentido e de promessas infinitas, porque por vezes chegamos mesmo a acreditar na vida que planearam para nós.
Não quero que sejas igual a mim, mas inevitavelmente hás-de vir com restos meus a correrem-te sangue a cima, e isso também há-de ser difícil de lidar.
Hás-de ser incrivelmente bonita, e não só nos traços. (Deus me perdoe mas vais ser linda)
Tens uns genes incríveis de mulheres dentro de ti.
As mulheres da nossa família, têm sido desde há muitas gerações atrás, mulheres de garra e de luta.
De grande coração, cheias de ambições e talento para dar e vender.
Vou-te contar as histórias de amor dos teus bisavós, ao mesmo tempo que te falo dos amores falhados que comprometeram alguma sanidade dentro das nossas casas.
Não para evitar que te tornes em alguém pouco coerente dentro de relações, mas para que quando isso acontecer, saibas que está tudo bem.
Hei-de te falar do meu pai, da minha mãe, da possível complicação que foi escolher e apaixonar-me por o homem que há-de ser teu pai, mas nisso prometo-te que hás-de te orgulhar.
Aconteça o que acontecer, ninguém permanecerá juntos porque tu apareceste, mas sabe que o amor e o respeito serão incondicionais na tua vida.
Vais crescer na praia, se tudo correr bem hás-de percorrer os mesmos caminhos e ruas que eu percorri.
Quero que saibas o privilégio que é, seres Algarvia, mas quando chegar a altura, não te vou guardar debaixo de asas nenhumas, ponho-te no comboio se for preciso.
Não querendo que cometas alguns dos meus erros, quero que saibas que os amores são passageiros, e que não vale a pena condicionar o amor por nós mesmos, permanecendo num sítio que nunca foi nosso.
Vais partir corações, mas rezo a mim mesma que não te partam de verdade o teu.
Perdoa-me se em alguma altura da minha vida, vou expressar as coisas de forma errada.
Não foi com certeza por mal, longe de mim querer que cresças confusa com as relações que estabelecemos uns com os outros.
Cultiva a tua contigo mesma, sai muito, viaja muito, compra pouca roupa e muitos CD's.
Lê muitos livros, mas poucas revistas de quiosque.
Quero que tenhas amor à arte, mas aconteça o que acontecer, terei orgulho em ti.
Não quero saber se não quiseres ir para a Universidade, se não fores boa a Matemática ou a Biologia.
Podes ser malabarista de circo, actriz, veterinária, carpinteira, pintora ou professora.
Na verdade, podes ser aquilo que tu quiseres ser.
Vou dar tudo o que tenho, e não tenho, para garantir que te abro todas as portas necessárias para correres os teus próprios mundos e caminhos.
Ama quem quiseres, usa o cabelo como quiseres, veste-te como gostares.
E desde que sejas o que quiseres, terei tido todo o sucesso que quis, ao educar-te.
Quero que corras o máximo que puderes, que molhes os pés no mar quase todos os dias, quero que cresças rodeada de animais, de música, e de pessoas verdadeiramente genuínas.
Vou falar contigo sobre sexo, sobre amor, sobre desilusões, sobre drogas, sobre a vida, sobre as amigas e os amigos.
Vou falar contigo da confusão que é ser mulher, porque se souberes, já é meio caminho andando para te compreenderes.
Escrevo-te esta carta não fazendo ideia sequer se algum dia vais aparecer, mas no dia em que tal acontecer, é possível que metade da Inês que sempre fui, morra.
Nasce outra pessoa qualquer, com o intuito de te fazer a ti mais feliz, do que me fizeram a mim enquanto filha.
Por isso sabe que escolher ter-te em mim, foi a maior prova de amor que dei a alguém.
Com amor de mim para ti, agora com vinte e um anos, longe de querer ter filhos ou pensar em amar demasiado alguém.
Já agora, o teu pai também deve andar apaixonado por outra pessoa qualquer, em outra vida longe da minha, mas quando eu o encontrar, e tu também, a gente mostra-lhe o que são mulheres da vida de alguém.
Amo-te incansavelmente.
Inês Alegre.



Comentários

  1. Vais ser uma excelente mãe,aposto.

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  2. Wowww! Completamente apaixonada por este texto

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  3. Sempre tive uma paixao enorme pela escrita e tenho um caderninho que me acompanha todos os dias caso me sinta inspirada. Tenho andado sem escrever, por falta de inspiração ou medo do fracasso, mas sempre que leio ou vejo algo teu sinto uma enorme vontade de escrever e sentir o orgulho de um texto completo. Gostava de ter coragem para partilhar o que escrevo mas nunca sinto que é bom o suficiente. Mas também sou uma miuda de 16, o que posso eu saber de interessante sobre a vida? Obrigada pela fonte de inspiração e pelo jogo de palavras em cada texto teu que eu tanto adoro.
    Acho que vou dar uso ao meu caderninho hoje ,
    Beijinho Inês ( sou Inês também, talvez isso me ajude a ter o mesmo jeito que tu )

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  4. ❤️❤️❤️

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